• "Às vezes é preciso se render ao fantástico, parar de buscar respostas ou conclusões. Às vezes devemos simplesmente deixar o mito e a lenda tomarem os seus lugares. É isso que conta. É isso que nos faz diferente..."

    JBAlves

domingo, 9 de março de 2014

Reflexões de um pensamento.



"O mito é o nada que é tudo
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos braços.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre
De nada, morre.

(Fernando Pessoa )


Um corpo pode ser reconhecido como um conjunto de várias partes que compõem um animal. Após a sua morte esse corpo é considerado um cadáver. O corpo humano, como o de outros mamíferos, é geralmente dividido em cabeça, tronco e membros.

Esse corpo, o meu corpo em especial, está deitado em uma fria mesa de metal no mais profundo e indistinto morgue da cidade. Morgue, ou necrotério, é o local onde são guardados os cadáveres e se realizam exames periciais visando determinar a “causa mortis” ou causa da morte.

Esse necrotério, pode ser encontrado no Continente das Américas, bem no sul do Brasil, em uma pequena cidade no norte do Paraná, na Rua Edgar Alan Poe número 1849. É um estabelecimento distinto e sem nenhum detalhe aparente, atendido e frequentado constantemente por médicos legistas, especialistas forenses, góticos ou simplesmente pessoas estranhas ao próprio estado da morte.

A Morte, óbito, falecimento ou simplesmente passamento são os termos que conheço para o término da vida de um organismo. A situação que ocorre para a transformação de um corpo em um cadáver.

Pode parecer estranho, e até mesmo mórbido essa minha análise. Isso se eu estivesse olhando um cadáver em uma mesa de ferro atrás de um balcão do necrotério. Mas na realidade, ou dentro de meus pensamentos, eu estou na realidade olhando para o meu corpo, o meu cadáver, do alto da sala desse mesmo necrotério.

Acredito que não é a loucura que me atinge, ou mesmo um sonho muito realista. Mas não sei também se estou morto, observando meu próprio cadáver a poucos metros de mim. Digo isso porque em nenhum momento fui avisado pelo anjo da morte ou mesmo tive contato com o famoso túnel de luz que me avisa e guia meu passamento.

Ainda assim, a morte é o fenômeno natural que mais motiva as discussões na religião, ciência e filosofia, é ela que envolve o homem desde o princípio dos tempos moldando seu misticismo, sua noção do que é magia, seus mistérios e seus insondáveis segredos.


Não sei mesmo o porquê desses pensamentos e análises. Nem o porquê dessa incomum necessidade de entender que me atinge neste momento. Se tudo é vaidade, ou mesmo ilusão eu não sei. Devo estar apenas me apegando a minha vida mundana, ou se der atenção ao meu cadáver abaixo à minha antiga vida mundana.

Não sei se devo acreditar em vida após a morte ou mesmo em reencarnação. Sinto que se começar a refletir sobre isso, itens diferentes poderão surgir e me incomodar, talvez o medo do inferno ou mesmo o medo de reencarnar em um corpo diferente do que tenho, ou tinha.

Consigo imaginar dezenas de antropólogos debatendo o tema da morte em um salão vazio, imaginando os ritos fúnebres de todos os homens que morreram e se tornaram cadáveres antes deles.

Simbologias e crenças misturadas com imaginação e medo. Sensações que nunca podem ser retiradas da balança, mas sempre são ignoradas por todos os pontos de vista da ciência.

Estranhos pensamentos que esse meu estado de “consciência” está tendo. Não sei bem se é o meu desligamento da matéria ou se é apenas minha maneira de expressar meu estupor e surpresa por ser voyeur de meu próprio cadáver.

Em que devo acreditar? Em quem devo me apegar? Sobre o que devo refletir? Pra quem devo orar, pedir, clamar ou mesmo me humilhar? São estas as perguntas que penso enquanto flutuo lentamente nessa sala vazia de vida, cheia de cadáveres.

Se fosse pensar em termos de anatomia, fisiologia ou mesmo tecnologia, eu teria os nomes, termos, crenças e teorias. Mas o que me resta agora nesse estado incorpóreo são a análise lógica e a fé cega.

Mas mesmo isso não passa de mero reducionismo, pensar que minha morte pode ser explicada pela biologia ou entendida pela fé não passa de uma mera e simples ilusão. Principalmente porque, de onde me encontro, a mais ou menos dois metros e meio de meu cadáver, eu não tenho nenhum motivo em descartar ou escolher alguma dessas opções.

Desde o tempo dos gregos se tenta explicar essa dicotomia, essa dissociação. Platão dividiu o homem em corpo e alma, mas tenho certeza que ele mudaria de opinião e seu pensamento platônico do mundo seria alterado se passasse pelo que estou passando agora.

Se pensar em Lacan e no seu conceito, de que o corpo é o espelho da mente, eu vou me reduzir a um pensamento incômodo e indiscreto que fica observando meu próprio cadáver sem cor e sem vida.

Argh! Mesmo o que conheço de Nietzsche não me traz respostas! Pois tudo parece subjetivo demais, ilusório demais, estranho demais para minha mente, pensamento, alma ou consciência entender.

Essa experiência de desencarnar não é incômoda, não sinto palpitação, mãos tremendo, joelhos trêmulos ou respiração entrecortada. Na realidade, não sinto nada, sou apenas uma voz na cabeça, sem cabeça! Hehe.

Acho que minhas células podem estar desligadas, mas meus chacras não. É como se meus centros de energia continuassem bombeando energia pra meus pensamentos e meu eu psicológico, mantendo assim um eu moral.

Será que isso vai continuar indefinidamente, ou só é preciso cremar meu corpo para que isso também se apague? Quanto tempo me resta agora que parte de mim virou um cadáver? Será que ficarei assim, flutuando nessa sala mal iluminada por todo o tempo?

Muitas questões sem resposta. Se eu fosse mais materialista seria apegado demais ao corpo físico e acreditaria que vou sumir, ou poderia viver a ilusão de que não estou morto e que logo vou me recuperar, pois estou apenas vivendo uma experiência de quase morte. Besteira! Mesmo eu sei que aquele corte de fora a fora em meu cadáver nunca vai poder ser fechado de novo.

Eu observei o legista me abrindo. Li minhas entranhas na tentativa de conhecer meu futuro. Na idade média, essa prática era feita com os pombos mas eu fiz isso com meu próprio corpo visando entender minha condição peculiar.

Interessante que a tranqüilidade que sinto agora é diferente de todas as que já tentei sentir. Não existe nenhuma pressão biológica competindo com minhas pressões psicológicas. Por enquanto sou apenas pensamento. Um pensamento com um leve humor negro, mas um pensamento.

Acho que o espiritismo e outras crenças esotéricas chamariam meu estado de perispírito, corpo fluídico ou mesmo de estágio desencarnado. Com tranqüilidade eu poderia gritar para todos que não me sinto assim. Na realidade não sei como devo me sentir.

O que estou passando parece, beeem de longe, com aquela sensação que temos quando bebemos demais e o corpo entorpecido começa a se desligar da mente embriagada. Um não sente o outro, mas ambos sabem que estão próximos. Talvez seja a ligação remanescente dessa energia que faz de mim o que sou agora, o pouco que resta de vida em meu cadáver. Lembro que meus cabelos e unhas ainda vivem e continuarão crescendo no caixão. Isso se eu não for cremado como pedi.

Enquanto nenhuma das duas coisas acontece, continuo tendo a sensação que flutuo dentro do necrotério. Projetando minha consciência não sei de onde e para onde. Só sei dizer que até agora não vi nenhuma dimensão diferente a que tenho visto normalmente.

O que sei é que estou passando por uma experiência de quase morte apenas porque meus pensamentos continuam fluindo. Seja o que for, não deixei de pensar e se penso logo existo, continuo ocupando esse espaço. Acho que os hindus chamam isso de Keshara e os Tibetanos de Delog. Infelizmente eu não fumei ou me droguei em vida pra ter mais nomes pra isso.

Já sei! Se me lembrar de minhas velhas aulas de Antropologia, acho que me tornei um mito! Ou seja, continuo existindo enquanto faço a narrativa de minha própria experiência. Enquanto crio uma explicação simbólica para o inexplicável eu mantenho minha própria consciência que continua se recriando.

Sou como um deus que só existe se tem seguidores. No meu caso, basta que uma única pessoa, eu mesmo, acredite em mim que continuarei subsistindo. Só assim consigo explicar minha experiência sobrenatural e minha realidade consciente.

Dessa maneira, o que estou fazendo refletindo sobre minha morte é criar um rito que embasa minha crença. Esse rito de refletir o que acredito e entendo sobre a morte, me mantém. Ou seja, é minha cultura e sua reflexão sobre a pós-vida que me mantém nesse estado.

Acho que Fernando Pessoa disse algo sobre isso. Ele comentou que o mito é o nada que é tudo. Para mim, nesse momento eu sou nada, puro pensamento que se traduz em tudo o que me restou. São estou mudo em meus pensamentos, na realidade, parece que se abriu uma torrente de reflexões em mim.

Interessante pensar nisso. Grande parte de minha vida eu construí pensando na esperança do amanhã, mas esse amanhã sempre me aproximou da morte, do último e derradeiro momento que estou tendo de refletir agora.

Camus disse que desde que o momento absurdo é reconhecido, ele se torna uma paixão, a mais angustiante de todas. Eu reconheço minha morte agora e estou apaixonado pela capacidade e possibilidade de reflexão que ela me proporciona.

Essa imensa calma, esse pensamento sem fim continua me impelindo a pensar nos mitos que me formaram, e em como, sempre acreditei nas forças sobrenaturais que governavam o mundo.

Sendo assim, acho que terei de continuar minha reflexão enquanto ela durar, aproveitar essa sensação como um xamã aproveitaria seu transe ritual. Quem sabe entender essa experiência possa me ajudar de forma que nunca pude imaginar antes.

Sinto um êxtase por trás da calma. Uma sensação que se abrir minhas “asas” através de meu pensamento eu poderei voar pela sala, pelo mundo que vivi e pelos mundos que sempre imaginei.

Acho que se continuar pensando, poderei encontrar um guia, um verdadeiro guia animal que me mostrará o kami que me tornei. Um ser com poderes incomuns, um pensamento personificado.

Será que esse “animal de poder” falará comigo? Será que poderei reconhecê-lo? Consigo imaginar um mundo, uma floresta, um céu. Será que como pensamento desencarnado isso é minha imaginação ou cada vez mais, esses pensamentos se tornam minha realidade?

Eu vejo agora um espaço profundo, pontilhado por estrelas. Dessa imagem consigo observar uma grande tartaruga que nada por todo esse espaço. Sinto que ela representa a terra, as personificações da eterna mãe e a vida.

Agora sinto que meu antigo eu, o meu corpo, nasceu das entranhas da terra e deve retornar de onde veio, honrando e respeitando tudo o que me foi dado, todo o ciclo que vivi.


O que resta de mim, meu pensamento, minha prece, minha crença pessoal continuará existindo.

Quem sabe essa reflexão crie um casco em mim que me permita voar pelo espaço, me reconectando com as energias da vida. Devo relaxar e focalizar minha atenção nisso.

Devo me lembrar da antiga fábula da lebre e da tartaruga. Ser rápido e forte, vivo e fugaz, não faz nenhuma diferença.

Assim entenderei a abundância que tive em vida e quem sabe, seguindo o fluxo da correnteza, eu possa pedir ajuda à mãe terra e entender tudo o que sou e serei a partir de agora.

Pois eu tive um córtex que era apenas uma camada, revestimento e superfície de mim mesmo. Tive um cérebro que com seus milhões de células me permitiam manipular um simples controle remoto de televisão. Tive todo o poder da comunicação que me permitiram trocar idéias, gesticular, falar, ouvir, ver, sentir e imaginar. E tive toda uma existência junto com diversos outros seres humanos, que se amontoavam em cidades de concreto ou mundos virtuais.

E o que tenho agora?


Agora tenho todo o tempo do mundo para refletir e pensar em tudo o meu corpo viveu, tudo o que acredito, tudo o que tive e tudo o que tenho.

Sendo assim, deixo o cadáver para trás e mergulho finalmente nas profundezas de meu pensamento. Sinto-me livre e sei que agora não tenho limites para onde devo ir.

Pois agora sou o mito, o nada que se torna o tudo, que apesar de não ser visto, brilha como o sol nos céus do mundo, brilhante e mudo, radiante e eterno...



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